José Maria Neves é, desde 2021, o Presidente da República de Cabo Verde. De origem humilde, a sua formação passou por Cabo Verde e pelo Brasil e, entre outros cargos, foi primeiro-ministro de Cabo Verde de 2001 a 2016 e a sua missão passou pela melhoria das condições de vida dos caboverdianos, assim como pela implementando uma política de crescimento mais sustentável, de modo a assegurar que 50% das fontes de energia no país eram verdes.
Cnofira esta grande entrevista a José Maria Neves, Presidente da República de Cabo Verde, onde fala da sua infância, dos tempos no Brasil, da sua carreira e dos seus principais desafios políticos. E onde houve ainda tempo para falar de livros, música e de planos para o futuro!
Antes de mais, é um prazer e uma honra ter a oportunidade de realizar esta entrevista, Sr. Presidente, e, acima de tudo, é um prazer partilhar com mais pessoas o seu percurso profissional e pessoal. Pode falar-nos um pouco da sua infância?
Eu cresci no interior da ilha de Santiago, nasci numa pequena comunidade do município de Santa Catarina, um município com importância socioeconómica e política muito grande no país.
O que mais me marcou na minha infância foi a pobreza e a dramática escassez de água. Nós tínhamos de andar km para conseguir uma lata de água. Eu via pessoas que se alimentavam muito mal, viviam muito mal, com grande carestia. São os dois marcos mais importantes que me fizeram inclusive pensar que eu tinha como missão fazer de tudo para ajudar as pessoas a viverem com mais dignidade.
José Maria Neves, Presidente da República de Cabo Verde
Sou filho de uma mãe solteira. Da parte da minha mãe, somos quatro irmãos: dois rapazes e duas meninas. Da parte do meu pai, somos mais do que muitos. O facto de ter sido criado apenas com a minha mãe, de ser ela a chefe da família, e a fazer tudo para ajudar os filhos, também foi algo que me marcou muito.
Portanto, digamos que eu tenho muito mais do meu lado feminino do que do meu lado masculino, até porque o meu irmão mais velho foi criado com o pai, e eu vivia com a minha mãe, as minhas duas irmãs biológicas, e uma terceira irmã, uma menina que a minha mãe criou. Eu vivi no meio de mulheres e sou gémeo. Tive, praticamente, uma convivência muito forte com mulheres muito poderosas e isso marcou muito a minha infância.
Conte-nos sobre o seu percurso académico.
Fiz o meu ensino primário em Santa Catarina. Na altura havia um único liceu, nas ilhas do Sul, e havia outro liceu nas ilhas do Norte. Portanto, quem quisesse continuar o ensino secundário tinha de se deslocar à Praia, o que na altura era muito difícil. Concluí o ensino básico no ano letivo 1973/1974, e, em 1975, ano da independência de Cabo Verde, vim para a cidade da Praia fazer o meu ensino secundário.
Tive várias escolhas em vários momentos, mas as minhas escolhas eram porque eu considerava que com aquelas profissões eu poderia ajudar melhor o meu país. A primeira coisa que eu quis ser foi padre. Na altura pensei que um padre fosse a pessoa que estava em melhores condições para apoiar e ajudar as pessoas. Depois, quis ser Administrador do Concelho, na época colonial, porque vi que o Administrador era quem mandava abrir trabalhos públicos e ajudava as pessoas mais pobres. Mais tarde, quis ser engenheiro-agrónomo para apoiar a agricultura, no desenvolvimento da minha ilha e do meu país.
Já no liceu, no momento de fazer a escolha do grupo que é determinante para a escolha do curso, acabei por me matricular no grupo que me dava acesso a Direito, e, já no fim, queria ser magistrado para fazer justiça. Acabei, por várias circunstâncias, a fazer gestão pública, no Brasil.
Como descreve a experiência de estudar no Brasil?
Foi uma experiência extraordinária. Na altura, saí de um pequeno país com menos de 400 mil habitantes e fui estudar num país com quase 200 milhões de habitantes! Só a cidade de São Paulo, para onde fui, tinha mais de 10 milhões na altura. Saí de um pequeno mundo e desembarquei num continente com milhões de pessoas, com arranha-céus, com uma vida cosmopolita, aberta ao mundo, porque São Paulo é uma cidade muito moderna, muito voltada para o que de mais inovador acontece no mundo.
O Brasil foi fundamental na minha formação, na minha abertura ao mundo. Cheguei lá no momento em que se fazia a transição política entre a ditadura militar e o regime democrático. Eu estive lá de 1982 a 1986, momento crucial na transformação sociopolítica do Brasil. São Paulo é uma cidade onde tudo acontece, o teatro, o cinema, a literatura, a televisão, a arquitetura. Aprendi a modernidade na cidade de São Paulo e foi o momento cintilante na minha vida.
Após terminar a faculdade quais eram os seus planos? Ficar no Brasil ou regressar a Cabo Verde?
Quando terminei a universidade, vários dos meus professores queriam que eu ficasse no Brasil. Uns queriam que eu fizesse mestrado e doutoramento porque eu poderia ter uma carreira académica. O meu professor de marketing queria que eu fosse trabalhar com ele no marketing político. Tinha outro professor que queria que eu fosse trabalhar com ele na consultoria. Mas a minha vontade frenética era de voltar a Cabo Verde. E regressei a Cabo Verde.
Naquela altura, um licenciado já tinha emprego antes de chegar. Fui para a Reforma do Estado e da Administração Pública, na Secretaria de Estado da Administração Pública, que dependia do Primeiro-ministro. Assim que cheguei, passei a dar aulas na Escola Nacional de Administração Pública, na altura praticamente não havia quadros formados nesta área, e então imediatamente dei teoria das organizações, liderança, gestão de conflitos e dei também gestão de recursos humanos, em vários momentos. Portanto, enquanto trabalhava na Administração Pública, dava aulas e, um ano depois, fui nomeado Diretor da Escola. Introduzi inovações no desenho curricular dos diferentes cursos na área da administração, numa perspetiva muito mais avançada e muito mais moderna. Depois, passei também a fazer consultorias nos domínios do desenho organizacional e da gestão dos Recursos Humanos, designadamente na elaboração de planos de cargos, carreiras e salários e de sistemas de avaliação de desempenho, e dei cursos sobre liderança e gestão de conflitos.
Quando surgiu a clareza em relação a seguir a carreira política e qual foi a sua motivação?
Acho que nasci com o bichinho da política. Bichinho esse que foi crescendo. Fui sonhando e realizando os meus sonhos. O meu primeiro sonho era ser administrador, na época colonial, quando criança, mas, depois, quando houve criação das autarquias locais e dos municípios, eu quis ser Presidente do meu município, e fui eleito Presidente, em 2000.
Depois quis ser Primeiro-ministro, fui eleito e fiquei 15 anos como Primeiro-ministro (2001-2016). A Presidência da República era o passo seguinte no nosso sistema de governo. É um sistema semipresidencialista: o Presidente não é Chefe do Governo, é apenas Chefe de Estado. A Presidência da República, digamos que é, praticamente, a ponta final de um político que sonha servir o seu país.
Fui sonhando a partir da realização dos outros sonhos, e tenho conseguido realizar todos os meus sonhos, até agora. Sou bem-aventurado neste sentido.
José Maria Neves, Presidente de Cabo Verde
Quais foram os passos essenciais para conquistar esta vitória como Presidente de Cabo Verde?
Tenho uma paixão imensa por Cabo Verde, pelos cabo-verdianos e pela política. Paixão, ética da responsabilidade e profundo comprometimento com as grandes causas nacionais. E o povo, fazendo uma avaliação positiva de todo o meu percurso, sobretudo enquanto Primeiro-ministro, escolheu-me à primeira volta como Presidente da República.
Na sua experiência, quais são os pontos positivos e menos positivos de ser Presidente?
Há muitos pontos positivos: é ótimo ser uma síntese, um ponto de encontro, um ponto de convergência e de equilíbrio da Nação. É como ser uma instância moral, quem cuida do espírito e da alma da Nação. Esse é um elemento muito importante. E, sobretudo, agora em que há muita polarização, há muita crispação, muitos extremismos, há quem tenha a responsabilidade de fazer convergir. Este é um dos elementos mais positivos que eu vejo.
Outro elemento é poder puxar o país para cima, é mostrar que nós somos capazes, e pela pedagogia da palavra, fazer com que as pessoas sintam que podemos superar os limites. E acho que é mais esse papel de fermento, esse papel catalisador de mudanças e de construção de um futuro melhor para Cabo Verde, que são os aspetos positivos de ser Presidente da República.
Um dos aspetos negativos é o entendimento que os atores políticos ainda vêm o papel do Presidente da República, enquanto árbitro e moderador do sistema político. O facto de o Presidente não ser Governo, não ser oposição, mas também não ser claque do Governo acaba por ter o seu papel dificultado. Se a sua ação não agradar o Governo, este reclama porque quer que o Presidente seja sua claque. A oposição, às vezes, acha que o Presidente deve ser mais oposição e mais contundente com o Governo. Portanto, esse “desconforto” é um elemento mais difícil e complexo de gerir.
Se não fosse PR hoje, qual seria outra função ou profissão que seguiria?
Se não fosse Presidente da República, continuaria a dar aulas na universidade como fazia. Adoro dar aulas, estar com a juventude e ouvir as suas inquietações, porque gosto do debate, do confronto de opiniões, do confronto de ideias, do inconformismo, da busca de coisas novas. Continuaria a dar aulas com o mesmo entusiasmo e a mesma alegria de sempre.
De que forma supera os desafios que surgem?
Considero que a vida é uma corrida de obstáculos. Assim, preparo-me face a cada desafio, para superar a mim mesmo. Penso não haver impossíveis. Aliás, escrevi um livro cujo título é Gestão das Impossibilidades. Acho que podemos sempre transformar impossibilidades em possibilidades. Nada é insuperável, por mais dificuldades e obstáculos que tenhamos, se tivermos fé, podemos movê-los. E é isso: a vida é uma superação permanente de nós mesmos.
Pode-nos falar um pouco da sua família?
Tenho uma companheira que é a Primeira Dama. Não temos filhos juntos, mas eu tenho quatro filhos. Tenho três rapazes que já são adultos, já estão formados e a trabalhar, e uma menina de 10 anos. A minha mãe, com 97 anos, ainda está viva, a minha irmã gémea Maria José também vive aqui na Praia, a minha irmã mais velha vive em Santa Catarina, e tenho outro irmão que também vive aqui na Praia. Estou a referir-me aos irmãos da parte da minha mãe. Tenho irmãos espalhados pelo mundo: Estados Unidos, Europa, várias das nossas ilhas e, pronto, é essa convivência.
Qual é o livro que recomenda sempre?
Eu leio, leio muito. Política e Economia são os livros que mais leio, mas também romances. Quero estar sempre atualizado relativamente aos diferentes romancistas do mundo. Há 4 livros que eu recomendaria. Eu recomendaria:
- Os Contos de Tchékhov;
- Um livro de Yuval Harari, 21 Lições para o Século 21 e
- 2 livros do Daniel Innerarity: A Política em Tempos de Indignação e Uma Teoria da Democracia Complexa.
Qual é a música ou cantor de que mais gosta?
Não gosto de uma, do que é único, do singular, eu sou muito plural. Mas adoro os apóstolos da música brasileira: Caetano Veloso, Chico Buarque, Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil, Djavan, Martinho da Vila, entre outros. Adoro a música brasileira, mas a cabo-verdiana deixa-me arrepiado. Arrepio-me sempre que ouço o Ildo, a Cesária Évora, a Nancy Vieira, a Mayra Andrade, a Élida Almeida, o Tcheka, a Neusa, a Assol Garcia e o Zeca di Nha Reinalda. Gosto muito da música cabo-verdiana e da música brasileira.
No futuro, como é que gostaria de ser lembrado? Qual o seu legado?
Como um cabo-verdiano que amou profundamente o seu país.
Quais são os seus planos para quando terminar o seu mandato?
Diz-se que o Presidente da República é o Mais Alto Magistrado da Nação e que exerce uma forte magistratura de influência. Quando eu deixar de ser Presidente não vou continuar a ser, como é óbvio, o Mais Alto Magistrado da Nação, mas continuarei a exercer uma forte magistratura de influência no meu país.
Sabemos que vai fazer a abertura oficial da 3ª edição do Fórum RH Cabo Verde, que se realiza no dia 29 de setembro na cidade da Praia. Qual é, na sua opinião, a importância de um evento como este para Cabo Verde, e quão importante é o tema dos recursos humanos na agenda do governo?
Aqui em Cabo Verde tornou-se um lugar-comum dizer que o nosso principal recurso são as pessoas, mas é evidente, é uma verdade óbvia, porque não temos outros recursos.
José Maria Neves, Presidente da República de Cabo Verde
Temos cabo-verdianas e cabo-verdianos com grande capacidade, grande talento e uma enorme vontade de criar. Mas também temos uma grande diáspora espalhada pelo mundo. Depois dos judeus talvez sejamos a nação mais diaspórica do mundo. Então, na verdade, os homens e as mulheres são os portadores de ideias, de valores, de capacidade de criar, de inventar o futuro.
O esforço que temos de fazer é considerar que as pedras preciosas de Cabo Verde são as pessoas e que, portanto, apenas pela via da sua lapidação poderemos construir um futuro melhor. O vigor do país, a sua transformação sociocultural e a sua dinâmica intelectual dependem do que nós conseguirmos fazer com os RH de Cabo Verde. Eu diria que tudo o que quisermos fazer por Cabo Verde deve estribar-se numa gestão estratégica dos recursos humanos do país.